Alguns de nós sentem a brisa de um mar longínquo Batente de esporas gastas nas costas queimadas. O som triste de um violoncelo que arbitrariamente toca sons de vários tons. E inspiramos calmamente aquela maresia. Que dias quentes.
E lá fora vejo as árvores de um verde apagado. Quero contar. Gostava de o saber fazer. Somos seres de histórias falsas ou verdadeiras e queremos dizê-las. Mas sentimos mais que simples palavras... Era uma vez eu, aquele que grita sem se ouvir. Os troncos desta floresta já cá andam há muito...e também eu.
Mas dizer o quê? Que sou feliz? Mentiras graves encontram-se por aí.
Há quem seja esmagado, apertado, malfadado por este mundo. Paredes que se estreitam à sua passagem. E ali morrem embriagados, pelas drogas que ofuscam a aflição. De músculos trabalhados pela força da pressão, gritam bem alto que querem conhecer a liberdade. Mas quem os ouve?
O caos. Cadeiras caídas pelo jardim e um pátrio abandonado às folhas da escola, rasgadas, escritas pelos que ali se sentam. O Caos. Mundo perfeito aos olhos dos incultos. Pensar? De braços abertos apreende-se a vida, aliás,deixa-se passá-la.
Outros em cantos ocultos adormecem a alegria. Revoltam-se e de escuro vagueiam sem querer aparecer. São vidrados na morte, porque a vida é incolor...aos seus passos.
Eu? Eu não. O caos, prazer deslumbrante de quem
só quer mais. As paredes a mim não me querem. Afastam-se devagar quando caminho, vagueio. E as árvores abrem os ramos para o sol entrar. E mais, mais, muito mais. Este pedaço redondo não parece chegar, mas o universo tem a cor errada...devia ser azul.
Vejo tanto. Suspiros profundos acompanham-me a cada mergulho. Sem esforço derroto as sensações assombradas.O que são elas para mim, afinal? A liberdade do indivíduo é aterradora, porque o sonho deixa de o ser e a realidade, essa, afaga os cabelos desgrenhados deste vagabundo.
Vagabundo...que nome patético mas eficaz. Vagabundo, pelo caos que assusta os outros. Não vejo estrelas. Já as vi e nelas acreditei, mas mais não. A escuridão que as realça deixou de atormentar os desejos de quem não lhes toca. Procurar uma, em especial. Uma estrela vagabunda. Porque não? Mas elas são-me impunes pela sua própria condição. O sol já pertence a todos, qual prostituta fácil e sazonal.
O caos. Capacidade voluntária da sociedade moderna, onde vivo, onde pertenço aos poucos. Sou actor de novelas dramáticas e rio às gargalhadas quando a câmara me foca. E não compreendem que o faço porque posso! Porque o meu jardim já ardeu e o que havia a perder ficou em cinzas. Cinzentas estrofes em fila indiana pelos meus anos, tantos. O caos, dá-me vontade de rir. Não é meu...só o acendo ao abrir a janela dos meus olhos.
Por vezes encontro-me só. Tudo é escuro e a mais ténue abertura no telhado deixa escapar a imagem. Há estrelas la fora, afinal...e algumas brilham incandescentes ao meu olhar. Sem memórias, catapulto vontades de voar...outra vez. E por momentos, dias, levanto os desejos ao altar como quem corre por gosto...hábito malfadado dos heróis. A esperança ofusca o passado e pelo cimento destas estradas entrego-me ao querer. Porque não? Arranco os sorrisos que me perseguem e atiro-me com todas as forças ao céu...quero tocar-lhe, tocar-lhes, escolher, decidir, afrontar, amar... Uma, ou outra, ou ainda outra. Sorriem-me de volta, as estrelas brilhantes, como quem verdadeiramente gosta deste jogo. O gato persegue-as como luzes inquietas numa parede tão escura, de olhos arregalados e expressão carregada. Quero uma...uma só!
Mas o meu brilho destrói os seus interesses. É demais, quem quer ser rainha de um imperador que só deseja rir e brilhar? Quais interesses mentirosos de quem só sabe ser feliz...e fazer feliz. Repetidamente, fortemente, alegremente... Isso não! Viver com luz eterna? Nunca! E então desvanecem o brilho e escondem-se atrás da escuridão de quem não brilha. Hábitos estranhos, loucos até... Ou então não brilham e querem brilhar! Roubar o brilho de quem com ele nasceu! E aí batem com força no vulto sorridente, inerte, cujo brilho não podem furtar, porque já houve quem o fizesse. Esse agora brilha sozinho e brilhará.
Então adormeço em descanso e acordo de novo...já é dia. E as estrelas partiram de novo...e o sol brilha, outra vez. Para sempre, no caos perfeito de quem sorri de olhos bem abertos. O caos, meu companheiro eterno, minha calma vagabunda, meu aspecto, meu dia alegrado ao som de gargalhadas...porque sim!