sábado, 16 de março de 2013

Marcas de água



PARTE I

Outro dia passei nesta rua. Uma rua larga, cheia de vida. As portas das casas entreabertas e um aroma a chocolate quente. As flores penduradas nas janelas dos alpendres faziam lembrar um quadro de Monet. As velhas, essas, bailavam de braços pela cintura, agora para a esquerda, agora à direita, como se ali ninguém passasse. Em cada homem, como que num sonho cinza escuro, notava-se a alegria escondida dos mineiros, quando chegam à superfície. As crianças não corriam, pareciam estafadas, ainda que coloridas a lápis. Oh, o céu...manto azulado num fundo branco de nuvens de algodão. 
A calçada era escarlate, com pétalas de tulipas espalhadas por pássaros rasantes...quais andorinhas fora de época, porque o tempo era fresco...estava fresco. 
Do meio da rua ouviam-se palmas. Passava ali uma noiva, vestida de verde, um verde claro que destoava da paisagem, com o noivo firmemente agarrado aos portões da entrada. Do lado de lá chovia...do lado de fora, mas ali não. 
Por isso ali passeava, eu. De negro vestido e laço apertado...ou seria um traço negro do pescoço até ao cinto? Já não me lembro. Mas ali andei, de olhos abertos, fixo naquele desenho colorido. Afinal, lá fora chovia...mas ali não.
Nada faltava,nem sequer razões. Nada que fizesse pensar que, umas luas mais tarde, pudesse ali chover. Naquela rua solarenga, feita à medida de uns sonhos do vagabundo contador de histórias. 
À entrada lia-se, numa placa elevada, Alameda da Fonte que Seca. Fazia sentido! Lá fora, fora da rua, o vento atirava a chuva de uns telhados para uns alpendres. Violentamente molhava cada vulto que, bem no fundo, passava a correr como quem foge dos lobos. Ali, na rua das cores, o sol parecia não mexer, nem com a sombra das horas, nem com a força da noite! 
Às vezes, penso que a sorte foi culpada de, um dia, ali ter entrado. Outras vezes, que num dia perdido, sem eira nem beira, saí a correr de sapatos trocados e contra todos os sentidos deixei-me levar. Sim, é isso, estava cansado e deixei-me levar. 
Hoje? Nesta rua há poças de vinho, sapos embriagados e mulheres de mãos na cabeça. Os homens atravessam os passeios de chapéu de chuva e as crianças vestem gabardinas. Ali choveu. Os portões, escancarados, prendem as plantas que restam contra os muros. Vê-se bem que ali ficaram, presas, na debandada. A frescura perdida deu lugar a um bafo doce, um fumo húmido enche suavemente os pulmões de quem ali respira. 
De mãos nos bolsos ali caminho. Escondo as marcas de água do meu desenho...esborratado, de um vermelho acinzentado...

3 comentários:

  1. continuas com aqueles textos difíceis de traduzir em pensamentos mais simples mesmo estando lá no fundo a ouvir-se uma musica da natureza

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  2. Que maravilha! (também me senti percorrer a rua - mesmo antes de ter chovido... :)

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  3. Ok, sabendo onde estás, eu entendo o que queres dizer, algo devia estar e não estar? O deixares-te levar..... huuumm

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