Fiz o que tinha a fazer, quero o que quero, o impossível… e por isso
acabei onde acabei. Estava precisamente a pensar nisto quando a aula
acabou. Reparei no grupo que permaneceu ao fundo, no mesmo canto onde estive
antes de ser colocado neste. Era um grupo de vultos que rodava em torno de um
último. Agarrado a si mesmo, este apresentava-se cabisbaixo. Como que triste…sei
lá.
Sem vontade de sair dali, enrosquei-me
mais um pouco no meu canto e encostei a cabeça à parede. Esta estava fresca,
era virada para a pequena floresta de pinheiros altos que a protegiam dos raios
do sol ao almoço.
Caras anteriormente conhecidas,
pensei, quando o grupo do fundo reparou que ali tinha ficado. Aproximaram-se e
pediram-me um lenço de papel…enquanto sorriam timidamente ao ver-me ali. Também
estes me haviam na memória de outros tempos…mais antigos.
Não tinha…não uso. Há uns anos
que as constipações nada querem comigo, entre outras coisas. Já por isso estou
neste canto. Aqui não há diferenças de temperatura.
Como que surpreendidos por um
fantasma de lençóis negros, os vultos pareciam querer saber porque é que, ali,
a temperatura era amena, a chuva não chegava e os ventos estavam parados.
Certamente no seu pequeno mundo, o canto do fundo da sala, as tormentas
faziam-se sentir. Os sóis escaldavam e os ventos, quando passavam, destruíam as
palmas das mãos.
Reparei que o vulto triste,
também ele, se aproximou. Observava-me estupefacto, pelo simples facto que…eu,
respirava aquele ar parado, sem ventos ou sem tormentas.
Abri os olhos e reconheci caras…umas
tristes, outras nem tanto. Queimadas do sol e salpicadas de chuva. Relembrei
expressões que não sentia há muito.
Tempos de abraços verdadeiros, beijos com sentido e algum sentimento. Já ali
tinha estado…naquele canto do fundo da sala. Era um passado algo distorcido,
mas sim…também eu ali estive. Já não…e isso trazia-me um pesar estonteante, as
lágrimas caiam e todo o meu corpo morria…só de pensar.
Sentaram-se ali, comigo. Como se
o professor agora fosse eu. O resto da sala estava deserto. Nem as janelas
deixavam ver o movimento do mundo, o verdadeiro, lá fora. Com alguma timidez
fiz o meu papel…
- Pareces triste.
- Sim, até estou. – o vulto
triste era agora uma pequena mulher de olhos inchados, cabelo apanhado e
pescoço longo. Tinha estado à chuva e as roupas, molhadas de lágrimas, eram de
um cinzento pálido. – Sou a Vitória.
- Olá Vitória, sou o Joshua.
V – Sim, já me haviam comentado.
Porque estás aqui? …e sem lenços de papel?
J – Porque já ali estive e, como
tu, fiquei molhado.
V – Ah…e aqui não te molhas?
J – Olha à tua volta! Vês
humidade? Ou paredes secas do sol? Sentes o vento forte ou o frio do Inverno?
V – Não. Não sinto nada.
J – Pois…
V – É por isso que estás aqui?
Qual é a piada?
J – Nenhuma!
V – Ok…então porque estás aqui?
J- Como te disse antes, ali fiquei
molhado. Uma…e outra, e outra vez.
V – Não gostas de ficar molhado,
estou a ver. – Vitória esboçou um leve sorriso.
J – Não, não gosto. Adoro
molhar-me, mergulhar em águas profundas e até nadar um mar inteiro…mas ficar
molhado? Ficar? Não. Além disso já estás a sorrir…e não estás ali.
V – Sim, sorrio mas a mágoa não
sai assim.
J – Se aqui ficasses, e não te
estou a dizer para ficares…aliás, não fiques! Mas se aqui ficasses, a mágoa
abandonava-te…como tantas outras coisas.
(…)
- Espera lá! – Fez-se luz num
outro vulto e uma cara pintada de cabelos lisos e compridos, muito bonita por
sinal, levantava o sobrolho. Teria os seus trintas e reluzia como a mulher mais
bonita do grupo. – Já agora, sou a Aicho. O que estás a dizer? Já não percebo
nada.
J – Não quero que percebas. É
como explicar a uma criança que se vai queimar enquanto cresce, que vai cair e
magoar-se, que vai perder um dente e levar injecções. Mesmo sabendo isso, não
vai deixar de viver e levantar-se…não pode.
A – De olhos serrados, fitou-me
com um enorme ponto de exclamação.
J – Com isto eu sorri calmamente –
Vez aqui algum vestígio de chuva? Por outro lado, vez aqui algum vestígio de
sol?
A – Não. Não vejo e confesso que
estou a ficar confusa.
J – Agora já sabes que não gosto
de ficar molhado. Não me entendas mal. Aceito a chuva…é necessária. Mas não
mais em cima de mim. Já chega, aliás…já chegou.
A – Mas também não tens sol…aqui.
Não gostas de sol?
J – Sim, gosto…gosto demasiado de
sol, em especial em jardins secretos. Também por isso aqui estou.
A – Não percebo…não faz sentido.
J – Perdi-o demasiadas vezes…importantes
vezes. Já não acredito nele. Se ali vou, vejo-o, mas não o sinto. Fiquei
incapaz. – E sorri ao ver o desatino corporal de quem me ouvia.
(…)
- Mas…como é possível? O sol é
quente! Tens de o sentir… - Uma voz altiva descrevia agora todas as formas de
sentir o sol enquanto eu, atento, concordava.
J – Calma! Como te chamas?
- Mia.
J – Olá Mia. Tens razão. Disseste
tudo o que se podia dizer sobre as sensações dadas pelo sol. Mas como podes
ver, a minha pele (Já) não sofre. Está intacta. Estou como que num ambiente sem
ar….para gente como eu.
M – Gente como tu?
J – Gente como eu…que não… Não...não
sei! Pessoas cujas chuvas formaram os rios que descem das montanhas, cujos trovões
partiram peças em tantos pedaços que já não colam. Pessoas que acreditaram em
tudo! No sol, na frescura da chuva, no calor do deserto e nos ventos de neve.
Viveram-no como ninguém. Sugaram o mais profundo dos elementos, voaram com
tempestades, nadaram em maremotos de chuva e gelaram até os seus corações
partirem em milhões de pequenas partículas de sangue. Também sentiram o mais
quente dos sóis e as águas mais doces do universo…sentiram, mas já não.
M – Falas como se isso se gastasse.
J – Não, não gasta. Isso é
impossível…é eterno. Mas há correntes que te levam sempre ao mesmo lugar.
M – Escolheste aceitar?
J – Não. A escolha de alguns é a âncora
de outros.
M – Medo?
J – Sim, medo!
M – Não podes viver assim!
J – És inteligente. Compreendes o
que digo, também vais compreender o que sinto.
(…)
- Eu também estou a perceber. Não
gosto de ficar molhada, por isso uso um guarda-chuva.
J – É uma opção, quero que saibam
que não sou dono da verdade. Não estou
aqui porque sou mais esperto…ou inteligente. Nem sequer escolhi. Foi como se,
de repente, o meu navio tivesse ancorado…e aqui estava eu. Disseram-me um dia
que, às vezes, acontece.
- Acho que já me aconteceu, mas
levantei âncora e segui viagem. É como o meu nome, sou a Esperança.
J – Chamar-te-ia Força…mas isso
não é nome. No entanto pareces tê-la.
E – Acredito que as tempestades
são passageiras e o que não nos mata…
J – Gostei muito de ouvir essa
frase. Sempre fui assim. Fui atirado borda fora umas quantas vezes e nadei sempre
até alcançar. E a crença, a esperança, é a maior de todas as armas.
E – E então?
J – Deixei de ficar surpreendido.
E – Surpreendido? Com o quê?
J – Com as tempestades.
E – Isso é mau.
J – Sim, é muito mau. Em especial
quando sabes o que vem a seguir.
E – Não podes saber. Ninguém sabe
se vem mais uma tempestade ou a própria bonança.
J – E quando deixas de sentir a
bonança porque te habituaste a vê-la e não a senti-la? Sabes que ela está aí…até
a vives por breves momentos e nela acreditas. Mas a consciência prova-te, uma
vez e outra, que também as bonanças terminam?
E – Não têm de terminar…
J – Não, não têm. Mas as que
conheci, todas elas, terminaram.
E – Não tiveste sorte! E ainda
não encontraste a Tua bonança.
J – Está bem. Mesmo a viver aqui,
neste canto, a pagar este preço, acredito que um tumulto me atire para o fundo
da sala, onde o sol (também) está.
E – Então estás aqui porque
queres.
J – Pensei que sim. Até saí
daqui, por vezes. Mas sem bem me aperceber porquê, acabei sempre aqui.
Mia – Estamos a falar de amor!
Vitória – Não me fales nisso!
Acho que vou fazer como o Joshua e durante uns tempos, venho para este canto da
sala.
Aicho – Não digas tolices! Não
estás a ver que este canto não é para ti? Isto não me parece para pessoas que
decidem vir para aqui só porque estão tristes e querem uma pausa. As pessoas
aqui estão como que…doentes
J – Acho que compreendeste melhor
que ninguém, Aicho. Estou doente.
Esperança – Mas vais-te corar.
J – Não penso nisso. Não consigo.
A cura envolve o jardim secreto de alguém…e se é secreto, ninguém mais pode
entrar nele. E é aí que que quero estar…só aí! É onde está tudo o que quero,
onde está tudo o que preciso…aí, no jardim secreto de alguém! Mas, eu aceito e
acredito que os segredos são segredos. Por isso o impossível…é-o até ao fim.
Estou ciente da minha doença.
M, A, E, V – O jardim secreto?
J – Sim, o jardim secreto.
(…)