domingo, 15 de julho de 2012

Jardim Secreto


Fiz o que tinha a fazer, quero o que quero, o impossível… e por isso acabei onde acabei. Estava precisamente a pensar nisto quando a aula acabou. Reparei no grupo que permaneceu ao fundo, no mesmo canto onde estive antes de ser colocado neste. Era um grupo de vultos que rodava em torno de um último. Agarrado a si mesmo, este apresentava-se cabisbaixo. Como que triste…sei lá.
Sem vontade de sair dali, enrosquei-me mais um pouco no meu canto e encostei a cabeça à parede. Esta estava fresca, era virada para a pequena floresta de pinheiros altos que a protegiam dos raios do sol ao almoço.
Caras anteriormente conhecidas, pensei, quando o grupo do fundo reparou que ali tinha ficado. Aproximaram-se e pediram-me um lenço de papel…enquanto sorriam timidamente ao ver-me ali. Também estes me haviam na memória de outros tempos…mais antigos.
Não tinha…não uso. Há uns anos que as constipações nada querem comigo, entre outras coisas. Já por isso estou neste canto. Aqui não há diferenças de temperatura.
Como que surpreendidos por um fantasma de lençóis negros, os vultos pareciam querer saber porque é que, ali, a temperatura era amena, a chuva não chegava e os ventos estavam parados. Certamente no seu pequeno mundo, o canto do fundo da sala, as tormentas faziam-se sentir. Os sóis escaldavam e os ventos, quando passavam, destruíam as palmas das mãos.
Reparei que o vulto triste, também ele, se aproximou. Observava-me estupefacto, pelo simples facto que…eu, respirava aquele ar parado, sem ventos ou sem tormentas.
Abri os olhos e reconheci caras…umas tristes, outras nem tanto. Queimadas do sol e salpicadas de chuva. Relembrei expressões que não sentia há muito. Tempos de abraços verdadeiros, beijos com sentido e algum sentimento. Já ali tinha estado…naquele canto do fundo da sala. Era um passado algo distorcido, mas sim…também eu ali estive. Já não…e isso trazia-me um pesar estonteante, as lágrimas caiam e todo o meu corpo morria…só de pensar.
Sentaram-se ali, comigo. Como se o professor agora fosse eu. O resto da sala estava deserto. Nem as janelas deixavam ver o movimento do mundo, o verdadeiro, lá fora. Com alguma timidez fiz o meu papel…
- Pareces triste.
- Sim, até estou. – o vulto triste era agora uma pequena mulher de olhos inchados, cabelo apanhado e pescoço longo. Tinha estado à chuva e as roupas, molhadas de lágrimas, eram de um cinzento pálido. – Sou a Vitória.
- Olá Vitória, sou o Joshua.
V – Sim, já me haviam comentado. Porque estás aqui? …e sem lenços de papel?
J – Porque já ali estive e, como tu, fiquei molhado.
V – Ah…e aqui não te molhas?
J – Olha à tua volta! Vês humidade? Ou paredes secas do sol? Sentes o vento forte ou o frio do Inverno?
V – Não. Não sinto nada.
J – Pois…
V – É por isso que estás aqui? Qual é a piada?
J – Nenhuma!
V – Ok…então porque estás aqui?
J- Como te disse antes, ali fiquei molhado. Uma…e outra, e outra vez.
V – Não gostas de ficar molhado, estou a ver. – Vitória esboçou um leve sorriso.
J – Não, não gosto. Adoro molhar-me, mergulhar em águas profundas e até nadar um mar inteiro…mas ficar molhado? Ficar? Não. Além disso já estás a sorrir…e não estás ali.
V – Sim, sorrio mas a mágoa não sai assim.
J – Se aqui ficasses, e não te estou a dizer para ficares…aliás, não fiques! Mas se aqui ficasses, a mágoa abandonava-te…como tantas outras coisas.
(…)
- Espera lá! – Fez-se luz num outro vulto e uma cara pintada de cabelos lisos e compridos, muito bonita por sinal, levantava o sobrolho. Teria os seus trintas e reluzia como a mulher mais bonita do grupo. – Já agora, sou a Aicho. O que estás a dizer? Já não percebo nada.
J – Não quero que percebas. É como explicar a uma criança que se vai queimar enquanto cresce, que vai cair e magoar-se, que vai perder um dente e levar injecções. Mesmo sabendo isso, não vai deixar de viver e levantar-se…não pode.
A – De olhos serrados, fitou-me com um enorme ponto de exclamação.
J – Com isto eu sorri calmamente – Vez aqui algum vestígio de chuva? Por outro lado, vez aqui algum vestígio de sol?
A – Não. Não vejo e confesso que estou a ficar confusa.
J – Agora já sabes que não gosto de ficar molhado. Não me entendas mal. Aceito a chuva…é necessária. Mas não mais em cima de mim. Já chega, aliás…já chegou.
A – Mas também não tens sol…aqui. Não gostas de sol?
J – Sim, gosto…gosto demasiado de sol, em especial em jardins secretos. Também por isso aqui estou.
A – Não percebo…não faz sentido.
J – Perdi-o demasiadas vezes…importantes vezes. Já não acredito nele. Se ali vou, vejo-o, mas não o sinto. Fiquei incapaz. – E sorri ao ver o desatino corporal de quem me ouvia.
(…)
- Mas…como é possível? O sol é quente! Tens de o sentir… - Uma voz altiva descrevia agora todas as formas de sentir o sol enquanto eu, atento, concordava.
J – Calma! Como te chamas?
- Mia.
J – Olá Mia. Tens razão. Disseste tudo o que se podia dizer sobre as sensações dadas pelo sol. Mas como podes ver, a minha pele (Já) não sofre. Está intacta. Estou como que num ambiente sem ar….para gente como eu.
M – Gente como tu?
J – Gente como eu…que não… Não...não sei! Pessoas cujas chuvas formaram os rios que descem das montanhas, cujos trovões partiram peças em tantos pedaços que já não colam. Pessoas que acreditaram em tudo! No sol, na frescura da chuva, no calor do deserto e nos ventos de neve. Viveram-no como ninguém. Sugaram o mais profundo dos elementos, voaram com tempestades, nadaram em maremotos de chuva e gelaram até os seus corações partirem em milhões de pequenas partículas de sangue. Também sentiram o mais quente dos sóis e as águas mais doces do universo…sentiram, mas já não.
M – Falas como se isso se gastasse.
J – Não, não gasta. Isso é impossível…é eterno. Mas há correntes que te levam sempre ao mesmo lugar.
M – Escolheste aceitar?
J – Não. A escolha de alguns é a âncora de outros.
M – Medo?
J – Sim, medo!
M – Não podes viver assim!
J – És inteligente. Compreendes o que digo, também vais compreender o que sinto.
(…)
- Eu também estou a perceber. Não gosto de ficar molhada, por isso uso um guarda-chuva.
J – É uma opção, quero que saibam que não sou dono da verdade.  Não estou aqui porque sou mais esperto…ou inteligente. Nem sequer escolhi. Foi como se, de repente, o meu navio tivesse ancorado…e aqui estava eu. Disseram-me um dia que, às vezes, acontece.
- Acho que já me aconteceu, mas levantei âncora e segui viagem. É como o meu nome, sou a Esperança.
J – Chamar-te-ia Força…mas isso não é nome. No entanto pareces tê-la.
E – Acredito que as tempestades são passageiras e o que não nos mata…
J – Gostei muito de ouvir essa frase. Sempre fui assim. Fui atirado borda fora umas quantas vezes e nadei sempre até alcançar. E a crença, a esperança, é a maior de todas as armas.
E – E então?
J – Deixei de ficar surpreendido.
E – Surpreendido? Com o quê?
J – Com as tempestades.
E – Isso é mau.
J – Sim, é muito mau. Em especial quando sabes o que vem a seguir.
E – Não podes saber. Ninguém sabe se vem mais uma tempestade ou a própria bonança.
J – E quando deixas de sentir a bonança porque te habituaste a vê-la e não a senti-la? Sabes que ela está aí…até a vives por breves momentos e nela acreditas. Mas a consciência prova-te, uma vez e outra, que também as bonanças terminam?
E – Não têm de terminar…
J – Não, não têm. Mas as que conheci, todas elas, terminaram.
E – Não tiveste sorte! E ainda não encontraste a Tua bonança.
J – Está bem. Mesmo a viver aqui, neste canto, a pagar este preço, acredito que um tumulto me atire para o fundo da sala, onde o sol (também) está.
E – Então estás aqui porque queres.
J – Pensei que sim. Até saí daqui, por vezes. Mas sem bem me aperceber porquê, acabei sempre aqui.
Mia – Estamos a falar de amor!
Vitória – Não me fales nisso! Acho que vou fazer como o Joshua e durante uns tempos, venho para este canto da sala.
Aicho – Não digas tolices! Não estás a ver que este canto não é para ti? Isto não me parece para pessoas que decidem vir para aqui só porque estão tristes e querem uma pausa. As pessoas aqui estão como que…doentes
J – Acho que compreendeste melhor que ninguém, Aicho. Estou doente.
Esperança – Mas vais-te corar.
J – Não penso nisso. Não consigo. A cura envolve o jardim secreto de alguém…e se é secreto, ninguém mais pode entrar nele. E é aí que que quero estar…só aí! É onde está tudo o que quero, onde está tudo o que preciso…aí, no jardim secreto de alguém! Mas, eu aceito e acredito que os segredos são segredos. Por isso o impossível…é-o até ao fim. Estou ciente da minha doença.
M, A, E, V – O jardim secreto?
J – Sim, o jardim secreto.
(…)


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